Destruições Criadoras no Setor Elétrico

Destruições Criadoras no Setor Elétrico
Artigo publicado originalmente no Broadcast do Estadão.
Os efeitos das necessárias políticas de distanciamento social e isolamento na crise do Covid-19 já se fazem sentir na economia e nas empresas de todos os setores. No setor elétrico, as respostas de políticas têm atacado problemas como a falta de capacidade de pagamento dos usuários e de acesso a crédito e capital para as companhias. Ainda assim, urge aproveitar a oportunidade para rever temas estruturais preparando uma retomada mais robusta após a crise.
Com uma representação estruturada em torno de mais de 25 associações, o setor praticamente se uniu em defesa de uma operação de socorro às distribuidoras. Alegadamente, a solução para enfrentar a perda de arrecadação - fruto da retração da demanda e da inadimplência agravada pela suspensão de cortes determinada pela Resolução Normativa 878/2020 da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) - residiria no modelo da Conta-ACR. Concebida em 2013, a referida operação de financiamento sindicalizado (off-Balance Sheet) permitiu captar cerca de R$ 21 bilhões em três financiamentos. O pagamento diferido se deu através de repasse às tarifas dos consumidores regulados em 50 meses.
A Medida Provisória 950, publicada em 08 de abril, deu guarida às demandas do setor. O artigo 3º pavimenta o caminho para uma solução nos moldes da Conta-ACR, facultando ao Poder Executivo estabelecer condições e requisitos para a estruturação das operações a recolhimento dos recursos. As expectativas das companhias é que sejam replicados ingredientes como solução off-Balance Sheet e repasse às tarifas, permitindo captar entre R$ 17 e R$ 21 bilhões. Esse volume seria necessário para lubrificar as engrenagens de fluxos financeiros, assegurando pagamentos a montante da cadeia de valor, que inclui geradores e transmissores.
Mas um dia a crise do COVID-19 passa. E no day-after teremos muito provavelmente uma economia combalida e desarticulada em seus fluxos de produção e consumo. E os consumidores, muitos dos quais perderam renda e emprego de modo irrecuperável, terão contas para pagar. Dentre elas, a Conta Covid-19. E perceberão esse aumento nas faturas de eletricidade que recebem das distribuidoras. Cabe então complementar essa solução (tópica) com medidas no âmbito da reforma do setor de eletricidade - consubstanciada no Projeto Lei do Senado 232/2016, em tramitação no Congresso - a fim de garantir alocação mais equilibrada de custos e responsabilidades na gestão da crise.
Inspiração pode ser encontrada no baú das reformas de energia adotadas em diversos países nas décadas de 1980 e 1990. Um pilar daquelas transformações é a liberalização de mercados, percebida como instrumento essencial para promover ganhos de competitividade. Os grandes consumidores, que têm maior capacidade gerenciar sua contratação de energia, atendem a suas necessidades acessando mercados diretamente ou por meio de comercializadores, beneficiando-se da competição na geração. Aos menores, é garantida a possibilidade de serem atendidos por um default supplier (Comercializador de Último Recurso), mediante preços e tarifas determinadas pelo regulador. Essa é, por exemplo, a experiência de Portugal.
Mecanismos de mercado dessa natureza permitem melhor acomodar e repercutir as flutuações na economia e as interações entre setor elétrico e demais setores produtivos. E assim a resposta pavimenta o caminho para uma recuperação mais rápida da economia.
A crise da pandemia reduz demanda por eletricidade ao redor do mundo, de modo generalizado. E a competição traduz essa menor demanda e preços menores em queda nas despesas com eletricidade. Os consumidores residenciais também se beneficiam dessa redução. Resgatando o exemplo português, lá os consumidores atendidos pelo Comercializador de Último Recurso já experimentam redução nos preços médios que repercutem em tarifas menores de venda para clientes finais (último recurso) e tarifas sociais de venda ao mercado regulado.
No Brasil, entretanto, nossas engrenagens de contratação de longo prazo silenciam a propagação dessas ondas para consumidores, dificultando a própria retomada da economia. A reação primeira das companhias foi recorrer a escritórios de advocacia em busca de abrigo em cláusulas de força maior.
Se no início da vigência do modelo da Lei 10.848/2004 havia benefícios para as distribuidoras pela gestão de um volume muito maior de recursos do que sua parcela na arrecadação - que corresponde a cerca de 20% de sua receita anual -, desde 2012 se avolumam desvios de contratação em relação a suas necessidades. Em consequência, surgem desequilíbrios custosos sem que as companhias contem com instrumentos de gestão para enfrentá-los. Sua condição passiva nesse contexto as fragiliza e gera riscos elevados do ponto de vista econômico-financeiro e de reputação.
Para as distribuidoras, é passada a hora de promover a separação entre os serviços de rede - negócio das companhias - e a comercialização de eletricidade, objeto de contratação de longo prazo. As tendências e perspectivas de aumento da contratação no ambiente livre seriam melhor recepcionadas por uma tal mudança, através da criação de um comercializador regulado de energia (CRE). Ficaria atribuída a esse a responsabilidade de suprimento de pequenos consumidores regulados que não quisessem fazer a escolha de um supridor no mercado. E o regulador seria responsável por determinar preços e tarifas para esses usuários.
A relação entre as distribuidoras e consumidores passou por momentos de acirramento e tensão com a revisão da norma da geração distribuída. Não vai longe no passado a campanha - muito explorada principalmente pelos geradores solares e endossada até pelo presidente Jair Bolsonaro - condenando a tentativa de #TaxarOSol. Adotar solução análoga àquela implantada por economias que embarcaram nas reformas da década de 1990 nos permitiria navegar para a modernização do setor de modo mais célere e flexível, sem abrir mão da segurança jurídica e estabilidade regulatória.
Se já contássemos com mecanismo semelhante, talvez pudéssemos de modo mais ágil acomodar os efeitos das flutuações atuais na atividade econômica sobre a demanda de eletricidade, transmitindo preços menores para consumidores residenciais, comerciais e industriais. Pouparíamos as distribuidoras de grandes embates que podem emergir na recuperação, atribuindo responsabilidades de modo mais equilibrado entre os segmentos da cadeia de valor no setor elétrico. Restaria enfrentar o tema da comercialização de energia. Mas isso é assunto para outra hora.
*Joisa Dutra é diretora do Centro de Regulação em Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV CERI) e membro do Conselho Global do Futuro da Energia do Fórum Econômico Mundial. Foi diretora da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) entre 2005 e 2009. Esse artigo representa exclusivamente a visão da autora.
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