Joisa Dutra escreve artigo para o Broadcast
Joisa Dutra escreve artigo para o Broadcast
Joisa Dutra, diretora do FGV CERI, escreveu o artigo o Broadcast do Estadão, intitulado "Mantendo as luzes acesas na pandemia do COVID-19".
O artigo trata dos possíveis impactos da pandemia no setor elétrico e a alteração na capacidade de pagamento dos usuários de eletricidade, entre outros aspectos.
Leia o artigo completo abaixo e acompanhe a contribuição intelectual do FGV CERI sobre produção normativa relativa ao COVID-19 por meio do Monitor Regulatório do COVID-19 do FGV CERI.
Joisa Duttra: Mantendo as luzes acesas na pandemia do COVID-19
Correndo o risco de entediar o leitor, nada é mais importante no momento do que as consequências econômicas da pandemia do Covid-19. A globalização e a complexidade que caracterizam a economia mundial fazem dessa uma crise sem precedentes. E os remédios precisam considerar soluções "fora da caixa" para mitigar seus impactos sobre saúde, renda e emprego da população. É assim que estão pensando setores público e privado em diversos países. Caberá criar condições adequadas e realistas para ancorar as expectativas que serão fundamentais na retomada da atividade econômica.
A crise do Covid-19 é fruto de um choque exógeno, com dimensões de oferta e demanda. Nesse cenário, instrumentos de política monetária têm eficácia limitada. Para complementá-las, países em diversos continentes já anunciam medidas de política fiscal. Ainda que o foco inicial seja a saúde, é necessário criar espaço para endereçar as consequências econômicas. E essas são magnificadas pelas dificuldades que temos inclusive de avaliar quais são elas.
Como segmento da infraestrutura, o setor elétrico é considerado essencial. Em termos de investimentos, foi um dos mais bem-sucedidos neste século. Passou por processo de modernização, com privatizações e expansão das redes. Logrou êxito em conectar mais de 99,8% da população. Mas resta um desafio. Quando se consideram os objetivos de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas (SDG) não pontuamos bem na dimensão social de affordability.
A capacidade de pagamento dos usuários de eletricidade enfrenta limites. Consumidores de baixa renda já contam com a Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE). Em 2019, o programa beneficiou quase nove milhões de famílias, e para 2020, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) estabeleceu orçamento de R$ 2,618 bilhões. A expectativa para este ano já era de um aumento no número de usuários atendidos.
Para ajudar esse segmento da população, o Ministério de Minas e Energia e o senador Marcos Rogério (DEM-RO) trabalham em proposta para aliviar problemas das famílias de baixa renda por um período de três meses. Ainda que bem-vindas, essas medidas são insuficientes.
Os acontecimentos em outros países permitem antever que os desdobramentos da crise devem percorrer um conjunto de fases. Nos estágios iniciais, as interrupções são restritas, mas à medida que se adotam confinamentos e quarentenas, aumenta o impacto sobre a atividade econômica. No Brasil, características estruturais amplificam esse processo: a alta informalidade no mercado de trabalho (40%), mais vulnerável a choques exógenos; e a grande participação do setor de serviços - mais de 70% do PIB -, que apresenta retomada mais lenta.
Mas esse quadro não fornece a dimensão correta dos problemas de affordability que os usuários de eletricidade enfrentarão na crise do Covid-19. Há também trabalhadores com carteira assinada que têm grande parte de sua renda proveniente de comissões. Parcela expressiva desses três grupos será duramente penalizada em sua geração de renda. E esse efeito é persistente. Considere, por exemplo, as refeições não servidas, que não permitirão aos garçons recuperarem as gorjetas mesmo com o retorno das atividades.
Esses exemplos são importantes para dimensionar os impactos que as empresas de eletricidade sofrerão em termos de inadimplência. Em estudo do FGV CERI em 2015, estimamos o impacto da então política de realismo tarifário sobre as perdas da Light. Em um primeiro momento, o "tarifaço" produziu aumento sensível da inadimplência. E a partir do sexto mês, a empresa experimentou aumento de perdas não técnicas - furtos e fraudes. Vale destacar, no entanto, que a análise dos dados da companhia revela comportamento assimétrico: se as perdas aumentam em períodos de crise, a recuperação é menos proporcional na bonança.
No conjunto de medidas sendo desenhadas para enfrentar a crise, é importante considerar como abordar o real quadro de capacidade de pagamento dos cidadãos usuários de eletricidade. A política errada é aquela que não considera a dimensão singular do problema de affordability que enfrenta o setor de eletricidade no Brasil - e que é agravado de modo sem precedentes pela pandemia.
As respostas ao redor do mundo incluem a suspensão de cortes por inadimplência por um período determinado. O Pandemic Planning Document, produzido pelo Edison Electric Institute, defende suspensão dos cortes por inadimplemento. Essa proposta tem encontrado amplo apoio na National Association of Regulatory Utility Commisioners, que representa os reguladores estaduais nos Estados Unidos, entidades responsáveis pela regulação da distribuição de eletricidade no país. Faz sentido estabelecer medida semelhante no Brasil por um período compatível com as expectativas de duração das medidas emergenciais pelos demais órgãos da administração. Revisões são sempre possíveis. Mas isso não basta. Diante da notória baixa capacidade de poupança na economia, uma parcela muito expressiva da população terá sérias dificuldades para fazer frente a suas faturas de eletricidade durante os confinamentos e quarentenas. Mais ainda com aumento do consumo por permanecer mais tempo em casa, algumas vezes inclusive trabalhando. Eventuais preocupações com problemas de perigo moral - que não se justificam diante de um choque exógeno dessa natureza - podem ser mitigadas, por meio de ações focadas.
Mesmo depois da retomada, é preciso encontrar soluções para a dilação dos prazos de pagamento das dívidas contraídas durante a fase mais severa do choque. E o tempo requerido para amortizar esses débitos precisa ser compatível com a recuperação da capacidade de geração de renda da população atingida. Do contrário, dar-se-á margens para respostas isoladas e descoordenadas locais.
Não respeitar as necessidades da população e os impactos da crise sobre sua capacidade de pagamento compromete a geração de caixa e de valor da indústria como um todo. Fica assim difícil retomar o ritmo de funcionamento e expansão de um segmento tão importante para sustentar crescimento econômico futuro.
Joisa Dutra é diretora do Centro de Regulação em Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV CERI) e membro do Conselho Global do Futuro da Energia do Fórum Econômico Mundial. Foi diretora da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) entre 2005 e 2009. Esse artigo representa exclusivamente a visão da autora.
Acompanhe a contribuição intelectual do FGV CERI sobre produção normativa relativa ao COVID-19 por meio do Monitor Regulatório do COVID-19 do FGV CERI.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.