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Selecionar campeões, um caminho para a derrota

Selecionar campeões, um caminho para a derrota

Leia o artigo intitulado "Selecionar campeões, um caminho para a derrota", escrito pela diretora do FGV CERI, Joisa Dutra, para o Broadcast do Estadão:

Começa o segundo semestre e com ele grande esforço de aprovação de reformas. O governo federal acaba de encaminhar ao Congresso sua proposta de reforma tributária. As negociações para sua aprovação devem consumir algum tempo. Em prazo (bem) mais curto, espera-se a aprovação da reforma do gás. Além de ter designado como relator o deputado Laércio Oliveira (PP-SE), o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, tem manifestado que sua aprovação depende de alguns ajustes na proposta do governo, que consta do Projeto de Lei 6.407/13. Vale a pena entender um pouco as implicações dos argumentos veiculados na imprensa e suas consequências para o futuro do setor elétrico.

Na visão de um grupo de agentes e experts, dentre outros (doze) pontos, o projeto de reforma do gás precisaria contemplar um aumento substancial na contratação de termelétricas inflexíveis. De acordo com essa linha, para explorar a riqueza proveniente do pré-sal, seria necessário implantar usinas termelétricas "prioritárias" que operariam na base (prioridade de despacho/produção). O setor elétrico seria então a "âncora" para viabilizar o Novo Mercado de Gás. Nessa visão, o desenvolvimento de um mercado competitivo de gás começa produzindo uma distorção em um outro mercado: de eletricidade. A âncora equivale a escolher uma tecnologia campeã - violando preceito importante de neutralidade na seleção de tecnologias. O setor elétrico, os consumidores e o País não merecem e, mais importante, a reforma do gás não precisa disso.

Tal contratação inflexível de 12 GW de usinas termelétricas (UTEs) a gás não é necessária para garantir a segurança do suprimento no setor elétrico. Um dos argumentos utilizados na defesa dessa contratação seria que ela permite acomodar as flutuações da produção variável de eletricidade das fontes intermitentes - como eólica e solar (Variable Renewable of Energy - VRE) - no contexto de um risco hidrológico crescente. Atento a essa preocupação, o governo já trabalha para incorporar mecanismos que permitam valorar os diferentes atributos das diversas tecnologias, a exemplo da despachabilidade. Esse tema já faz parte da proposta de reforma do setor elétrico. O gás natural pode desempenhar um papel relevante no setor elétrico, desde que essa contratação seja via mercado e agnóstica - neutra do ponto de vista tecnológico, contrariamente à inflexibilidade presente na proposta desse grupo. O importante é contratar o que se precisa - serviços - de forma mais vantajosa e competitiva possível.

O setor elétrico no Brasil é privilegiado. A participação atual de fontes renováveis está em patamares que muitos países europeus têm como alvo. Em parte como resposta ao primeiro choque do petróleo, no início da década de 70, começaram a ser implantadas no País grandes usinas hidrelétricas com reservatórios. A capacidade de armazenamento plurianual permitia suavizar variações de consumo ao longo do tempo. No entanto, nos últimos quinze anos esse processo se alterou. Fruto de restrições sócio ambientais que limitaram o aproveitamento de novos potenciais hidráulicos, as novas usinas são aproveitamentos a fio d'água (sem armazenamento). E o planejamento da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) sequer contempla adições significativas de capacidade instalada por usinas hidrelétricas, como se verifica pelo Plano Decenal de Expansão 2029. Tal processo tem sido usado para justificar a necessidade de térmicas âncora como forma de garantir a segurança do sistema.

As renováveis continuam avançando, impulsionadas pelas usinas eólicas, pelo aumento da fonte solar - que ganha tração com a geração distribuída - e por tendências futuras de eólicas offshore. Esse avanço é respaldado pela qualidade dos ventos no País, o que assegura elevada produtividade (fator de capacidade comparativamente muito alto). Nossa matriz elétrica com predominância hidráulica já tem a capacidade de recepcionar uma grande penetração de renováveis com produção variável. Ademais, os operadores de sistemas elétricos ao redor do mundo estão aprendendo rapidamente a lidar com as consequências dessa mudança.

Outro recurso distribuído, o armazenamento de água de curto e médio prazo ajuda a absorver um aumento das fontes de produção variável na transição energética. Pouco se comenta que a maior parte do armazenamento em operação no mundo se dá na forma de usinas reversíveis (Pumped Hydro Storage - PHS), tecnologia que responde por mais de 96% da capacidade global de armazenamento (International Energy Agency, 2018). No Brasil, ela é subaproveitada. Apesar de contarmos com mais de 100 GW de capacidade instalada de hidrelétricas, temos menos de 200 MW de PHS. A inexistência de preços horários no mercado de curto prazo ajuda a explicar esse quadro: quando os preços da eletricidade não variam, não há oportunidades de arbitragem a explorar por meio de usinas reversíveis. Logo, não vale o investimento. Mas esse problema está com os dias contados diante da entrada dos preços horários na operação (desde janeiro de 2020) e no mercado (prevista para 2021).

Um segundo ponto a considerar é que essa entrada de geração termelétrica na base pode não oferecer o serviço de flexibilidade que o sistema precisa para acomodar o aumento da penetração das VREs e de variação na demanda (carga). Como a geração das VRE varia em escala de segundos, é preciso contar com fontes com capacidade de resposta rápida para fazer frente a essa intermitência - caso das hidrelétricas e térmicas - sem comprometer a qualidade. Quem não tem hidro faz com térmica (ciclo aberto), PHS ou importação/exportação de energia, caso do Reino Unido; e quem tem hidrelétrica faz com essa fonte e a custo mais competitivo, caso do Brasil.

Um terceiro argumento é o desafio de equilibrar essa contratação adicional diante do recuo da demanda. Na crise do covid-19, a retração da demanda de eletricidade produziu aumento da participação de renováveis - com custo marginal baixo - em vários sistemas ao redor do mundo, sem causar problemas na operação ou comprometer a segurança e confiabilidade do suprimento. Se esse é o caso, a escolha do campeão - geração a gás na base - tira espaço de crescimento dessas fontes desnecessária e indevidamente. Ademais, caso acolhêssemos essa proposta, os reservatórios seriam "enchidos" com a produção de térmicas inflexíveis a preços maiores do que custaria "acumular água" com geração solar/eólica. A quantidade adicional de energia a ser expandida precisa guardar relação direta com a demanda global (existente e futura). A contratação desse volume de térmicas independente da demanda agrava o superávit já existente.

O setor elétrico não merece carregar essa contratação de gás inflexível. Ao longo das duas últimas décadas conseguiu-se aprofundar a vocação renovável, atraindo capitais para investimentos. A continuidade e aceleração desse processo depende de uma arquitetura adequada de formação de preços e gerenciamento de riscos. E a escolha da termelétrica campeã no mínimo vai na contramão desse processo. O setor elétrico não tem capacidade de suportar esse volume de 12 GW. A contratação das UTES inflexíveis produziria deslocamento no Mecanismo de Realocação de Energia (MRE) - principal mecanismo de gerenciamento de risco - reduzindo e contaminando sinais de preços tão necessários para incentivar investimentos na expansão do sistema - e sem gerar benefícios para os usuários de eletricidade. Nesse contexto, as termelétricas campeãs distorceriam significativamente os preços no mercado de curto prazo, penalizando ainda a expansão das renováveis que estavam ganhando tração e que contam inclusive com apoio no Congresso - caso da fonte solar - e que fazem parte de compromissos internacionais. Tal inflexibilidade acarreta risco não precificado e não gerenciável na arquitetura atual de funcionamento do setor.

Seguir a experiência bem-sucedida recente do gás nos Estados Unidos requer explorar os espaços para uma penetração econômica, social e ambientalmente viável desse recurso. A validade do argumento de que o gás natural é o combustível da transição energética depende das condições iniciais do sistema. Naquele país, a revolução do shale gas foi altamente benéfica, mas principalmente porque permitiu substituir o carvão na produção de eletricidade em um parque de geração de eletricidade que datava de cerca de 40 anos. Esse não é o caso aqui. Nossa condição inicial é de uma matriz que tem evoluído mantendo sua vocação renovável sem comprometer o atingimento dos objetivos de segurança e confiabilidade do suprimento.

A proposta de contratação prioritária de 12 GW das termelétricas a gás natural viola a expansão econômica do sistema elétrico, setor que tem sido enaltecido pelo governo por sua capacidade de atrair capitais privados para financiar sua expansão - inclusive os tão bemvindos investidores institucionais, que crescentemente desembarcam aqui para investir em renováveis com energia destinada ao ambiente livre. O plano alternativo em discussão "aloca" ao setor elétrico grande parte da responsabilidade pela expansão de redes que não são necessárias nem para o desenvolvimento do mercado de gás, nem do setor elétrico, penalizando a competitividade de ambos junto com a capacidade de pagamento dos usuários. Para além de todas essas questões, nossa história de selecionar tecnologias campeãs pelas razões erradas já tem exemplos suficientes de fracassos para provar que tal prática deveria pertencer ao passado.

Joisa Dutra é diretora do Centro de Regulação em Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV CERI) e membro do Conselho Global do Futuro da Energia do Fórum Econômico Mundial. Foi diretora da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) entre 2005 e 2009. Esse artigo representa exclusivamente a visão da autora. 

Acompanhe a contribuição intelectual do FGV CERI sobre produção normativa relativa ao COVID-19 por meio do Monitor Regulatório do COVID-19 do FGV CERI.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.