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COVID-19

Mudando a narrativa no setor elétrico no Brasil

Mudando a narrativa no setor elétrico no Brasil

Leia o artigo escrito pela diretora do FGV CERI, Joisa Dutra, para o Broadcast do Estadão:

Joisa Dutra: Mudando a narrativa no setor elétrico no Brasil

Caminhamos para o final de maio e pouco se sabe sobre o futuro das medidas de flexibilização do distanciamento e isolamento social. Dentre as diversas classificações dos países quanto ao sucesso no enfrentamento da pandemia, o portal endcoronavirus.org propõe três grupos: aqueles que já venceram o vírus, aqueles que estão quase lá e os que (ainda) precisam fazer algo. Todas as economias sul e norte-americanas avaliadas estão nesta terceira categoria. Se não foi possível evitar, resta a oportunidade de aprender com países que já estão reabrindo fronteiras e desenvolvendo planos para recuperação da atividade econômica.


A Europa tenta adaptar seus planos já desenhados para o enfrentamento das mudanças climáticas - The European Green Deal - para promover uma retomada verde em tempos de Covid-19. Aprovado no Parlamento Europeu em 2019, o plano de 10 anos consiste em um roadmap para substituir modos de produção e consumo baseados em combustíveis fósseis rumo a uma economia sustentável. O objetivo é transformar esse plano em um pacote de Recuperação Verde - Green Recovery Package -, que permita enfrentar as consequências econômicas adversas do Covid-19. E o desafio não é pequeno. As recuperações das crises do petróleo na década de 70 e as crises financeira asiática e global recentes foram caracterizadas por aumentos no volume de emissões de gases de efeito estufa. Esse comportamento é observado mesmo nos casos em que as emissões caíram na crise - caso das três primeiras citadas.


Nos Estados Unidos, ao contrário do ARRA Act de 2009, que incentivava a implantação de Smart Grids, investimentos em energias renováveis e eficiência energética, os pacotes de estímulo recentes, de mais de U$ 2 trilhões, dão pouca ou nenhuma atenção à economia verde.


Energia renovável e investimentos verdes são oportunidades para o Brasil. A recuperação vai requerer investimentos e atração de capitais domésticos e externos. O futuro próximo traz aumento de incertezas.

Diversos países estão aprovando legislações na retomada que perenizam algum nível de teletrabalho. Além disso, as reuniões virtuais no futuro vão diminuir consideravelmente o volume de viagens a negócios.
As mesmas reuniões, encontros e aulas que passaram para o mundo virtual dão uma pista importante do alcance da digitalização no pós-Covid-19. A digitalização e o aumento da participação do consumidor são pilares da transição energética. Ela inclui ainda a descentralização no setor elétrico - aumento da participação de recursos distribuídos de energia, como geração distribuída, resposta da demanda, eficiência energética e armazenamento. Cria-se espaço para uma maior participação do consumidor, que passa também a ofertante.


Para além das oportunidades futuras, temos desafios presentes. Em alguns setores da atividade econômica a pandemia acarreta redução e até destruição de demanda em algum grau, caso do turismo e transporte aéreo de passageiros. Por sua vez, alguns segmentos de infraestrutura experimentam reduções de natureza transitória. Nestes, é razoável esperar retorno nos níveis de demanda e quem sabe retomada em um futuro não distante. E na hora de atender ao apetite dos investidores, o setor de energia elétrica desponta então como forte candidatos a atrair recursos.


Governo e regulador têm se esforçado para dotar as companhias de eletricidade de mecanismos que permitam fazer frente aos benefícios concedidos aos consumidores na crise. Para enfrentar a redução de faturamento, aumentadas pela suspensão de corte por inadimplemento e diferimento de reajustes, o Decreto 10.350/20 institui a Conta Covid-19, a ser regulamentada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). As medidas propostas atendem a preocupações de alívio de capital e garantia de acesso a crédito das companhias de eletricidade, transferindo custos a tarifas futuras; porém, nada nos dizem sobre o futuro e a recuperação da economia.


Para o Build Back Better, é essencial conciliar essa posição relativamente confortável do setor de energia - com participação muito elevada de energias renováveis - com ganhos de eficiência e modernização na economia. Nossa vocação é verde, mas isso não é suficiente. Precisamos ser competitivos. Desde 1980 o País patina nos ganhos de produtividade. Em 2010, começamos a planejar adoção de redes elétricas inteligentes, estendendo a digitalização ao segmento da distribuição de eletricidade; porém, sucessivas desacelerações e crises têm atrasado, senão paralisado, a implantação desses planos, limitando os resultados a projetos piloto. Algumas empresas na região Sudeste - Enel, EDP e CPFL - formularam projetos próprios, alguns mais ambiciosos, para promover digitalização no ambiente da distribuição, mas isso não tem sido suficiente. A recuperação tem de vir acompanhada de políticas que propiciem ganhos de produtividade e da competitividade.


A caixa de soluções para modernização do setor inclui também institucionalização da resposta da demanda e eficiência energética na indústria, inclusive envolvendo as chamadas indústrias "hard to abate", como alumínio, cimento, aço, petroquímica, aviação, transporte de longo curso, e navegação. Investimentos dessa natureza conciliam vocação renovável da eletricidade no Brasil com inovação tecnológica e eficiência. E permitem ao consumidor - grande ou pequeno - desempenhar papel mais ativo na transformação do setor.


Medidas práticas e politicamente factíveis para enfrentar a crise do Covid-19 precisam entregar o que a sociedade quer: recuperação da economia e emprego. Mas em tempos de transição energética e digitalização, é preciso criar condições para que os investimentos na recuperação também promovam ganhos de eficiência e produtividade. Isso significa reunir a resposta de emergência à crise atual com planos a médio e longo prazo para aquilo a que se tem chamado um "Green New Deal": investimentos massivos em infraestruturas energéticas, uso eficiente de energia a preços verdadeiramente competitivos e transportes públicos para reduzir as emissões de carbono, impulsionar inovação tecnológica e aumentar a participação do emprego qualificado.


A crise é devastadora para todos, mas apenas alguns países estão tomando medidas adicionais para complementar a recuperação com mudanças estruturais que garantirão benefícios para muito além dela. E o Brasil precisa estar entre eles.

 

Joisa Dutra é diretora do Centro de Regulação em Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV CERI) e membro do Conselho Global do Futuro da Energia do Fórum Econômico Mundial. Foi diretora da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) entre 2005 e 2009. Esse artigo representa exclusivamente a visão da autora. 

Acompanhe a contribuição intelectual do FGV CERI sobre produção normativa relativa ao COVID-19 por meio do Monitor Regulatório do COVID-19 do FGV CERI.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.