Água e saneamento na pandemia da COVID-19

Água e saneamento na pandemia da COVID-19
A diretora do FGV CERI, Joisa Dutra, e a pesquisadora Juliana Smiderle escreveram o artigo intitulado "Água e saneamento na pandemia da COVID-19 – desafio e oportunidade" para a edição de abril de 2020 da Conjuntura Econômica, revista do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE).
Água e saneamento na pandemia da Covid-19 – desafio e oportunidade
O enfrentamento da crise do Covid-19 impõe desafios sem precedentes e coloca administradores públicos e privados em mares ainda não navegados. Os governos têm sido obrigados a tomar decisões e dar respostas em velocidade muito alta e com informações muito limitadas. As primeiras medidas são no campo da saúde, para desacelerar o espalhamento e contaminação. Assim se pode ganhar tempo para desenvolver protocolos de tratamento e prevenção. Em seguida, os choques de oferta e de demanda produzidos pelas medidas de distanciamento social e isolamento exigem respostas rápidas para mitigar impactos econômicos. Nos países em desenvolvimento e economias emergentes, esses problemas são agravados pela falta de espaço fiscal. Em consequência, as respostas podem ser mais lentas, contribuindo para maior transmissão e maior letalidade, já agravadas pela menor capacidade de tratamento do sistema de saúde.
Menos despesas com saúde e menor efetividade dos gastos produziram um quadro conhecido de sucateamento de sistema de saúde, menor volume de leitos hospitalares, escassez de médicos e - não menos importante - menor acesso a água, saneamento e higiene - em inglês, WASH (water, sanitation and hygiene). O Brasil se enquadra obviamente nessa descrição. Apesar do reconhecimento da prioridade do tema - desde 2016 se desenha e trabalha para aprovar um novo marco legal para o saneamento - os avanços tardam. Mas a crise não. E nos pega despreparados.
Para além do tratamento, a prevenção é medida essencial para conter a disseminação do vírus. Nesse sentido, a Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca que a melhor forma é manter bons hábitos de higiene, dentre eles lavar as mãos com água e sabão frequentemente. Nesse cenário de pandemia, fica ainda mais evidente como o setor WASH é de extrema importância para toda a população.
Pensando nas respostas que o setor precisa dar, é interessante aprender com discussões ao redor do mundo. Em webinar recente, promovido pela organização Sanitation and Water for All, foram apontadas recomendações para enfrentar a crise em ambientes sujeitos a restrições no acesso à água, saneamento e higiene3. Em resumo, a reunião deixou quatro recomendações: (i) comunicação é essencial; (ii) é necessário promover coordenação para a tomada de decisão; (iii) considerar os efeitos secundários; e (iv) garantir o abastecimento de água para a população.
Uma importante lição é que a comunicação deve ser definida pensando no público alvo da mensagem. Apesar de vivermos em uma era digital, o que facilita a disseminação de informações, muitos ainda carecem de acesso à internet. Como exemplo de estratégias para garantir a efetividade da comunicação, no Camboja e na Costa do Marfim os governos elaboraram folders com histórias para as crianças e carros de som que veiculam mensagens para as áreas mais afastadas com informações sobre sintomas e formas de prevenção da doença.
Encontrar coordenação é difícil. Temos visto isso no Brasil com casos de prefeitos e governadores determinando a suspensão das contas de energia elétrica, ou mesmo o fechamento de aeroportos, que são, por lei, competências da União. Certamente não ajuda a postura da Presidência da República em desacordo com as recomendações da OMS. A coordenação e alinhamento de ações dos governos em suas diversas esferas é necessária em qualquer momento. E vital para uma tomada de decisão rápida, eficaz e eficiente em uma crise como a que vivemos.
Diretamente rel acionada com a coordenação está a recomendação de considerar os efeitos secundários na elaboração dos planos de emergência pelos países. Além dos impactos na vida da população e no sistema de saúde, o Covid-19 afeta também a economia. Medidas como o isolamento social e paralização de atividades econômicas, que visam reduzir a transmissão do vírus, causam perdas massivas de emprego e renda; ou seja, a desaceleração econômica também produz vítimas. Nesse sentindo, é imperativo garantir a continuidade dos serviços essenciais para toda a população, como é o caso do abastecimento de água. Vale destacar que a manutenção deste serviço deve se dar tanto por rede (usual em centros urbanos), como através de soluções alternativas (em áreas rurais e assentamentos informais, por exemplo).
É recomendável que, durante este período de pandemia, seja suspensa a interrupção do serviço de abastecimento de água por inadimplemento. Medida desse caráter já foi tomada para os serviços de eletricidade pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL)4. A rationale é apoiar a prevenção da doença através da manutenção de hábitos de higiene, os quais dependem do acesso a água. Ao mesmo tempo, sugere-se que haja apoio a grupos vulneráveis, devido a expectativas de redução de renda, e por conseguinte da capacidade de pagamento, por conta da retração na atividade econômica. Para garantir a estabilidade da prestação do serviço, também é necessário preservar tanto quanto possível a geração de caixa para as empresas do setor.
Na Colômbia, por exemplo, o que está sendo adotado é garantia do volume mínimo de subsistência – seis metros cúbicos - para toda a população residencial por pelo menos 60 dias. Significa dizer que o governo suportará, com recursos públicos de origem já definida, referido montante de água para toda a população. Além disso, o governo disponibilizou linha de crédito para cobertura da folha de pagamento das empresas.
No Brasil, as Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESBs) são responsáveis pela prestação dos serviços de água e esgoto em cerca de 70% dos municípios5. Até o momento, percebe-se certo alinhamento entre os estados acerca da proibição dos cortes dos serviços; entretanto, há variações nos benefícios aos usuários. Em São Paulo, por exemplo, foi estabelecido que aqueles classificados como baixa renda estão isentos do pagamento das faturas dos três próximos meses - medida que deverá ser compensada com redução de despesas da companhia e ajustes orçamentários6.
No Rio de Janeiro, além do grupo de baixa renda, os usuários comerciais de pequeno porte também estão isentos pelo mesmo período implementado em São Paulo. Ademais, o governador do estado também aprovou a prorrogação do pagamento das faturas referentes a março e abril de todos os usuários por 60 dias7. Vale pontuar que, diferentemente da Colômbia e de São Paulo, o estado fluminense não indicou a fonte dos recursos públicos que serão utilizados para cobrir estes benefícios.
A pandemia exacerba nossas deficiências estruturais, desafiando nossa capacidade de conter a contaminação do Covid-19 no presente. No entanto, a mensagem da Sanitation and Water for All é clara: água, saneamento e higiene são essenciais na mitigação e no enfrentamento do vírus.
A crise econômica que deve se seguir vai tornar ainda mais difícil promover investimentos em saneamento. Contudo, a urgência desta crise apresenta uma oportunidade importante: aprovar a reforma para o setor que tramita no Congresso Nacional. Contribui-se assim para alcançar, não somente em tempos de emergência de saúde pública, mas por todo o futuro, acesso universal a tão importantes serviços.
1 Professora da FGV EPGE e Diretora do FGV CERI.
2 Pesquisadora do FGV CERI.
3 O Webinar “COVID-19 and WASH (Water, Sanitation and Hygiene)”, organizado pela organização Sanitation and Water for All, ocorreu no dia 26 de março. Disponível em: https://www.sanitationandwaterforall.org/news/swa-webinar-covid-19-and-water-sanitation-and-hygiene.
4 A Resolução Normativa ANEEL nº 878/2020 veda a suspensão de fornecimento de energia elétrica para todas as residências e serviços essenciais, pelo prazo de 90 (noventa) dias, dentre outros pontos.
5 Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), 2018.
6 Esta foi a decisão da Diretoria da SABESP, a ser aprovado pelo Conselho de Administração da Companhia ainda.
7 Decretos Estaduais n° 46.979/2020 e n° 46.999/2020
Joisa Dutra é professora da FGV EPGE e diretora do FGV CERI
Juliana Smiderle é pesquisadora do FGV CERI.
Este artigo faz parte do conjunto de publicações do FGV CERI relacionadas ao COVID-19. Veja mais no Monitor Regulatório do COVID-19 do FGV CERI.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.