A (Des)Construção de Um Mito: A Titularidade Municipal dos Serviços de Saneamento Básico
A (Des)Construção de Um Mito: A Titularidade Municipal dos Serviços de Saneamento Básico
Gustavo Kaercher Loureiro
Ao longo dos anos doutrina e jurisprudência seguem afirmando que os serviços de saneamento básico são da alçada municipal. Fazem isso a partir, sobretudo, de uma certa interpretação do art. 30, inc. V da Constituição, segundo o qual é competência dos Municípios “organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local”. Dessa “constatação” – que pouco tem de efetiva constatação e muito tem de construção jurídica – decorre, tradicionalmente, outra, qual seja, de que o Município detém amplos poderes relativamente às atividades que integram esse serviço público.
Pois bem. Este artigo tem o propósito de submeter à exame a noção de titularidade no saneamento básico (em especial, nos serviços de água e esgotamento sanitário). Pretende-se demonstrar que, no direito brasileiro, a titularidade municipal dos serviços de água e esgoto tem um acentuado caráter mitigado (não pleno), o que a torna sui generis dentro do grande universo das distintas titularidades de serviços públicos. A partir de um certo momento histórico, o Município passou a estar acompanhado de outros entes federativos cujas competências na matéria “enfraqueceram” ou “debilitaram” as suas prerrogativas, de tal forma que é lícita até a dúvida sobre se a posição do Município é, de fato e de direito, a de um verdadeiro titular desses serviços públicos.
Procura-se justificar essas assertivas tanto por argumentos tirados da história do direito setorial quanto por considerações puramente dogmáticas.
Sob a primeira perspectiva serão repassadas as principais normas que ao longo da história da disciplina jurídica do saneamento cuidaram do tema. Um exame dos principais diplomas normativos mostra que, vencido o período “clássico” das concessões municipais (até meados da década de 50 do século passado), a legislação subsequente foi atribuindo paulatinamente à União e aos Estados vastas e diferentes competências como a de planejamento, a normativa – inclusive relativas a normas gerais de tarifas e à estrutura tarifária – a fiscalizatória, a de financiamento e mesmo a de execução de obras de infraestrutura de água e esgoto e de operação desses sistemas.
Essa tendência só fez aumentar ao longo de todo o sec. XX e culminou com a Constituição de 1988. Ao contrário do que se apregoa, esta foi, dentre todas as nossas Constituições, a que mais insistiu no que se poderia qualificar como sistema partilhado de competências em matéria de saneamento, distribuindo tarefas entre União (arts. 21, inc. XX e 23, inc. IX), Estados (arts. 23, inc. IX e 25 § 3º) e Municípios (arts. 23, IX e 30, inc. V). A “Constituição municipalista” foi a menos municipalista no saneamento básico, dentre todas as nossas Constituições.
Estabelecido o argumento histórico-normativo e partindo da Constituição de 1988, procede-se a um exame de alguns aspectos da Lei 11.445/2007, tal como reformulada em 2020 pela Lei 14.026/2020. A ideia é mostrar como o NMSB, sem ultrapassar às escancaras os modestos avanços trazidos na ADI 1.842 sobre o tema, esvaziou ainda mais a titularidade dos Municípios em matéria de saneamento. Para tomar um exemplo dentre muitos – a prestação regionalizada é o mais vistoso – basta examinar quais, dentre as competências dos titulares fixadas no art. 9º da Lei 11.445/2007, não está limitada pela competência paralela de outros entes (União, Estados, Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA e Entes Reguladores Infranacionais – ERI’s).
Ao longo dos anos doutrina e jurisprudência seguem afirmando que os serviços de saneamento básico são da alçada municipal. Fazem isso a partir, sobretudo, de uma certa interpretação do art. 30, inc. V da Constituição, segundo o qual é competência dos Municípios “organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local”. Dessa “constatação” – que pouco tem de efetiva constatação e muito tem de construção jurídica – decorre, tradicionalmente, outra, qual seja, de que o Município detém amplos poderes relativamente às atividades que integram esse serviço público.
Pois bem. Este artigo tem o propósito de submeter à exame a noção de titularidade no saneamento básico (em especial, nos serviços de água e esgotamento sanitário). Pretende-se demonstrar que, no direito brasileiro, a titularidade municipal dos serviços de água e esgoto tem um acentuado caráter mitigado (não pleno), o que a torna sui generis dentro do grande universo das distintas titularidades de serviços públicos. A partir de um certo momento histórico, o Município passou a estar acompanhado de outros entes federativos cujas competências na matéria “enfraqueceram” ou “debilitaram” as suas prerrogativas, de tal forma que é lícita até a dúvida sobre se a posição do Município é, de fato e de direito, a de um verdadeiro titular desses serviços públicos.
Procura-se justificar essas assertivas tanto por argumentos tirados da história do direito setorial quanto por considerações puramente dogmáticas.
Sob a primeira perspectiva serão repassadas as principais normas que ao longo da história da disciplina jurídica do saneamento cuidaram do tema. Um exame dos principais diplomas normativos mostra que, vencido o período “clássico” das concessões municipais (até meados da década de 50 do século passado), a legislação subsequente foi atribuindo paulatinamente à União e aos Estados vastas e diferentes competências como a de planejamento, a normativa – inclusive relativas a normas gerais de tarifas e à estrutura tarifária – a fiscalizatória, a de financiamento e mesmo a de execução de obras de infraestrutura de água e esgoto e de operação desses sistemas.
Essa tendência só fez aumentar ao longo de todo o sec. XX e culminou com a Constituição de 1988. Ao contrário do que se apregoa, esta foi, dentre todas as nossas Constituições, a que mais insistiu no que se poderia qualificar como sistema partilhado de competências em matéria de saneamento, distribuindo tarefas entre União (arts. 21, inc. XX e 23, inc. IX), Estados (arts. 23, inc. IX e 25 § 3º) e Municípios (arts. 23, IX e 30, inc. V). A “Constituição municipalista” foi a menos municipalista no saneamento básico, dentre todas as nossas Constituições.
Estabelecido o argumento histórico-normativo e partindo da Constituição de 1988, procede-se a um exame de alguns aspectos da Lei 11.445/2007, tal como reformulada em 2020 pela Lei 14.026/2020. A ideia é mostrar como o NMSB, sem ultrapassar às escancaras os modestos avanços trazidos na ADI 1.842 sobre o tema, esvaziou ainda mais a titularidade dos Municípios em matéria de saneamento. Para tomar um exemplo dentre muitos – a prestação regionalizada é o mais vistoso – basta examinar quais, dentre as competências dos titulares fixadas no art. 9º da Lei 11.445/2007, não está limitada pela competência paralela de outros entes (União, Estados, Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA e Entes Reguladores Infranacionais – ERI’s).
Ao longo dos anos doutrina e jurisprudência seguem afirmando que os serviços de saneamento básico são da alçada municipal. Fazem isso a partir, sobretudo, de uma certa interpretação do art. 30, inc. V da Constituição, segundo o qual é competência dos Municípios “organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local”. Dessa “constatação” – que pouco tem de efetiva constatação e muito tem de construção jurídica – decorre, tradicionalmente, outra, qual seja, de que o Município detém amplos poderes relativamente às atividades que integram esse serviço público.
Pois bem. Este artigo tem o propósito de submeter à exame a noção de titularidade no saneamento básico (em especial, nos serviços de água e esgotamento sanitário). Pretende-se demonstrar que, no direito brasileiro, a titularidade municipal dos serviços de água e esgoto tem um acentuado caráter mitigado (não pleno), o que a torna sui generis dentro do grande universo das distintas titularidades de serviços públicos. A partir de um certo momento histórico, o Município passou a estar acompanhado de outros entes federativos cujas competências na matéria “enfraqueceram” ou “debilitaram” as suas prerrogativas, de tal forma que é lícita até a dúvida sobre se a posição do Município é, de fato e de direito, a de um verdadeiro titular desses serviços públicos.
Procura-se justificar essas assertivas tanto por argumentos tirados da história do direito setorial quanto por considerações puramente dogmáticas.
Sob a primeira perspectiva serão repassadas as principais normas que ao longo da história da disciplina jurídica do saneamento cuidaram do tema. Um exame dos principais diplomas normativos mostra que, vencido o período “clássico” das concessões municipais (até meados da década de 50 do século passado), a legislação subsequente foi atribuindo paulatinamente à União e aos Estados vastas e diferentes competências como a de planejamento, a normativa – inclusive relativas a normas gerais de tarifas e à estrutura tarifária – a fiscalizatória, a de financiamento e mesmo a de execução de obras de infraestrutura de água e esgoto e de operação desses sistemas.
Essa tendência só fez aumentar ao longo de todo o sec. XX e culminou com a Constituição de 1988. Ao contrário do que se apregoa, esta foi, dentre todas as nossas Constituições, a que mais insistiu no que se poderia qualificar como sistema partilhado de competências em matéria de saneamento, distribuindo tarefas entre União (arts. 21, inc. XX e 23, inc. IX), Estados (arts. 23, inc. IX e 25 § 3º) e Municípios (arts. 23, IX e 30, inc. V). A “Constituição municipalista” foi a menos municipalista no saneamento básico, dentre todas as nossas Constituições.
Estabelecido o argumento histórico-normativo e partindo da Constituição de 1988, procede-se a um exame de alguns aspectos da Lei 11.445/2007, tal como reformulada em 2020 pela Lei 14.026/2020. A ideia é mostrar como o NMSB, sem ultrapassar às escancaras os modestos avanços trazidos na ADI 1.842 sobre o tema, esvaziou ainda mais a titularidade dos Municípios em matéria de saneamento. Para tomar um exemplo dentre muitos – a prestação regionalizada é o mais vistoso – basta examinar quais, dentre as competências dos titulares fixadas no art. 9º da Lei 11.445/2007, não está limitada pela competência paralela de outros entes (União, Estados, Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA e Entes Reguladores Infranacionais – ERI’s).